segunda-feira, 6 de abril de 2015

VOCÊ É UM NÚMERO




VOCÊ É UM NÚMERO
Se você não tomar cuidado vira número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no como um número. Sua identidade é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista tem carteira com número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento - tudo é número.
Se é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem propriedade, também. Se é sócio de um clube tem um número. Se é imortal na Academia Brasileira de Letras tem número da cadeira.
É por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas de Física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de Matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.
Se você é comerciante, seu alvará de localização o classifica também.
Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência também é solicitado por número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio recebe um número. Para tomar um avião, dão-lhe um número. Se possui ações também recebe um, como acionista de uma companhia. É claro que você é um número no recenseamento. Se é católico recebe número de batismo. No registro civil ou religioso você é enumerado. Se possui personalidade jurídica tem. E quando a gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também.
NÃO SOMOS NINGUÉM? PROTESTO. Aliás é inútil o protesto. E vai ver meu protesto também é número.
Uma amiga minha contou que no Alto Sertão de Pernambuco uma mulher estava com o filho doente, desidratado, foi ao Posto de Saúde. E recebeu a ficha número 10. Mas dentro do horário previsto pelo médico a criança não pôde ser atendida porque só atenderam até o número 9. A criança morreu por causa de um número. Nós somos os culpados.
Se há uma guerra, você é classificado por um número. Numa pulseira com placa metálica, se não me engano. Ou numa corrente no pescoço, metálica.
Nós vamos lutar contra isso. Cada um é um, sem número. O si- mesmo é apenas o si-mesmo. (...)
Nossa sociedade está nos deixando secos como um número seco. (...)
Vamos amar que amor não tem número. Ou tem?
(Clarice Lispector)